O trabalho duro não pode vencer o dom natural (segundo os Shōnen)

André Luis Teixeira
3 min readApr 6, 2021

Aquela derrota amarga do Rock Lee pro Gaara não foi SÓ uma das maiores injustiças do Kishimoto. Ela representa uma visão problemática e pouco debatida sobre os protagonistas deste tipo de narrativa.

O seu Shōnen favorito não acredita que o esforço é suficiente para superar quaisquer obstáculos.

Os autores de manga de lutinha podem até fingir que existe uma esperança de “ascensão” por pura força de vontade, mas a verdade é que eles não acreditam que isso é o bastante para enfrentar as mazelas do mundo (representadas normalmente por um antagonista de “berço de ouro”).

Recolher provas para esse argumento foi relativamente fácil. Basta olhar para os maiores Shōnen da última década. Os protagonistas de séries como Dragon Ball, Naruto, One Piece, BNHA e Full Metal Alchemist começam sem muitos poderes, mas com algum potencial.

Até aí tudo bem, porque do ponto de vista da narrativa, essa visão de “potencial adormecido” ajuda a audiência a se relacionar com os personagens. Só que isso NÃO é o suficiente para os autores. Não… o protagonista PRECISA ter um poder imensurável dentro de si, que justifique as transformações que ele trará para o mundo. Afinal:

Se esforçar não é o bastante.

Os exemplos são vastos:

Naruto — um wannabe ninja meia boca, mas que aprendeu a fazer o kage bunshin. Só que ele também tem uma raposa com CHACRA INFINITO na barriga.

One Piece — um pirata que estica metido a besta e bom de luta. Só que ele tem o HAKI DO REI e ainda é filho do cara mais perigoso do mundo.

Jujutsu Kaisen — maluquinho bom de briga. Só que ele é a chave pra ressuscitar ou destruir a maior Maldição que já existiu.

Mas o mais imperdoável dos casos é de Boku no Hero Academia. Eu me lembro como se fosse ontem quando li o primeiro capítulo de BNHA e achei que o Midoriya seria um herói sem poderes.

Cara, tinha tudo pra ser isso. Um discurso lindão sobre como ser herói é mais do que ter superpoderes (tema inclusive abordado algumas vezes). Mas, na real, ele tomou um sermão do All Mighty sobre sua irresponsabilidade e depois recebeu o maior poder de todos.

Quadro de Boku no Hero Academia, cap 1. Os 3 primeiros capítulos podem ser lidos gratuitamente no MangaPlus (em inglês).

O ponto é que os autores criam uma relação com o público ao criar personagens “como a gente”, pra depois dizer: bem, ele não exatamente como você. Ele é especial, rs.

Consequentemente, essas narrativas que se prepõe a elevar o espírito dos jovens e ensinar importantes lições sobre a vida, acabam reforçando ideias babacas (que talvez estejam intrinsecamente ligadas à sociedade rígida na qual os autores vivem), como de que para “ser alguém”, você precisa nascer com algo especial e que o esforço, por si só nunca será o bastante.

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André Luis Teixeira

Escritor e host do podcast Ctrl F (http://bit.ly/ctrlfpodcast). Escrevo sobre o universo digital, as novas mídias, cultura e criatividade na internet.