Qualquer Review: as inovações narrativas do NerdCast RPG
O NerdCast RPG (mais especificamente a série “Call of Cthulhu”) é uma das obras de ficção mais bem produzidas da história dos podcasts.
Mas não é apenas o esmero técnico na imersão dessa história e a construção narrativa elaborada que fazem do NerdCast RPG uma obra de arte.
Existem também importantes características narrativas que separam Call of Cthulhu do áudio drama tradicional e criam uma experiência única para os ouvintes.
A imprevisibilidade dos dados
O NerdCast RPG é uma mistura orgânica do áudio drama e os RPGs de mesa. Do primeiro, ele herda a preocupação com a imersão dos ouvintes e a construção de uma narrativa coesa e instigante.
O impacto que isso tem sobre a obra se reflete no investimento em trilhas sonoras bem desenvolvidas que acompanhem a narrativa, nas centenas de horas de edição para que os efeitos de sonorização do ambiente (como sons das tempestades, invocações dos demônios, lança-chamas, etc…) sejam realistas e, claro, na criação, planejamento e roteirização de parte da história para que ela caminhe conforme o esperado.
Em relação ao RPG de mesa, o NerdCast capturou a imprevisibilidade que os dados trazem à narrativa. Quer dizer, quando momentos importantes da trama estão se desenrolando, os personagens precisam contar com a sorte dos dados jogados.
No exemplo abaixo, a expectativa do resultado dos dados cria uma grande tensão à narrativa e deixa uma impressão mais crível de perigo — afinal, não depende do desejo onisciente do autor, e sim dos números nos dados.
Claro que, para o bem da história, o resultado dos dados pode ser “ressignificado”. Ou seja, mesmo que os jogadores da mesa tivessem muito azar, certamente a trama não acabaria repentinamente com todos mortos.
É óbvio que neste sentido, a parte áudio drama sobrepuja as regras do RPG para que a história seja devidamente contada.
Mesmo assim, os dados tem um impacto real no desenvolvimento dos personagens e dão uma característica mais dinâmica, tensa e imprevisível para a trama. Como consequência, os ouvintes sentem que existe um perigo muito mais real para os protagonistas.
A quebra da 4ª parede
Uma outra característica que faz com que o NerdCast RPG seja muito mais do que um áudio drama é a quebra da 4ª parede (off-topic) constante.
O fato da narrativa não esconder os rituais e processos do RPG de mesa, nem apagar os comentários off-topic que são feitos durante o decorrer da trama, criam uma infinidade de outras formas de se relacionar com os acontecimentos da história.
Essa quebra da 4ª parede permite que haja uma avaliação crítica do que está acontecendo naquele momento. Como exemplificado a seguir, Azaghal (e não seu personagem) interrompe o narrador (Leonel Caldela) para fazer uma referência pop ao que está acontecendo — que tecnicamente não faria sentido nenhum naquele contexto.
Essa interrupção carrega consigo uma poderosa quebra de tensão do momento e ainda facilita a visualização mental da cena pelos ouvintes.
Neste segundo exemplo, o personagem do Jovem Nerd faz uma crítica à própria narrativa, falando sobre como essa ação totalmente improvável e imprudente pode funcionar pelo simples fato de estarem em um RPG.
Esse comentário, mesmo que simples aos olhares desatentos, carrega uma grande força à narrativa, pois (1) cria um momento genuinamente cômico e icônico para a obra, (2) reconhece e brinca com a fragilidade da solução narrativa e (3) faz uma conexão direta com os ouvintes (como se fosse um espectador acompanhando a história).
Isso possibilita um equilíbrio raro entre a comédia e o terror e destaca ainda mais a obra como um expoente para os amantes dos dois gêneros.
Metalinguagem
Por fim, a última e talvez a mais única característica do NerdCast RPG só pode ser verdadeiramente analisada dentro de um contexto maior. Isso porque o NerdCast não é apenas um podcast de RPG, ele é o podcast de bate-papo mais popular do Brasil.
E os personagens da trama, não são atores vistos pela primeira vez neste contexto. Eles são amigos do Jovem Nerd e Azaghal, além de convidados quase sempre presentes nos episódios tradicionais do podcast.
Isso significa que os ouvintes que acompanham o NerdCast há algum tempo, já conhecem aquelas pessoas e a forma como elas se relacionam — antes do RPG de mesa começar.
Isso faz com que, ao “consumir” aquela obra, os ouvintes percebam duas histórias se desenvolvendo. Na superfície, claro, se destaca a história do RPG, com seus personagens e monstros.
Mas também há uma segunda “leitura”: da história de 5 amigos jogando um RPG de mesa.
Quer dizer, quem conhece a personalidade do Azaghal consegue ver como ele constantemente desafia o narrador e os outros participantes agindo de forma propositalmente imprevisível e irritante.
No exemplo abaixo, o padre Don Azaghal (Azaghal) questiona uma carta de Thomas Faraday (Jovem Nerd).
No contexto da narrativa, esse questionamento do personagem poderia quebrar a “suspensão de descrença” que estava sendo desenvolvida.
No entanto, para aqueles que conhecem as pessoas controlando os personagens, a cena é hilária, pois sabemos que Azaghal está zuando o Jovem Nerd e mostrando como aquilo soa como uma solução infantil
Isso faz com que os ouvintes observem não apenas a história, mas a construção da história e de certa maneira, participem dela. Seria como ver os bastidores de uma peça de teatro, enquanto ela é apresentada para a audiência.
Isso permite uma experiência nova, diferente de qualquer áudio drama. Novas nuances surgem e a complexidade da obra se eleva.
O NerdCast RPG muito provavelmente não é pioneiro na utilização dessas ferramentas narrativas, mas certamente é uma das principais obras que a utilizam.